ANÁLISE: “Entre o feijão e a guerra: a irresponsável proposta do MST de enviar militantes à Venezuela”

A recente declaração de João Pedro Stédile, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), propondo o envio de militantes do movimento à Venezuela — ainda que com “funções civis” como “plantar feijão e cozinhar” — revela uma série de pontos gravíssimos de crítica sob o ângulo político, estratégico, ético e institucional. Para clarear: a proposta, conforme reportada, é a organização de “brigadas internacionalistas” para apoiar o governo de Nicolás Maduro, em meio à crescente tensão com os EUA.

A seguir, desenvolvo uma crítica extensa, dividida em vários aspectos — para que possamos examinar os múltiplos problemas que a declaração suscita.

1. Confusão entre ação social e internacionalismo paramilitar

Ainda que a intenção declarada seja “plantar feijão”, “cozinhar” e “apoio civil” aos venezuelanos em situação de crise, a iniciativa flerta perigosamente com uma lógica de mobilização internacional para conflito ou guerra — o que torna o gesto não meramente simbólico, mas de real risco institucional. Stédile admite que “não temos formação militar” mas que “podemos … estar ao lado do povo se houver uma invasão militar dos EUA”.

Esse tipo de mobilização internacional de militantes, mesmo sob aparência “civil”, levanta múltiplas questões:

  • qual o grau de autonomia desse tipo de “brigada”? sob quais vínculos de comando e responsabilidade?
  • há risco de que “apoio civil” se transforme em participação em conflitos armados, violações de soberania ou envolvimento em guerra irregular — com consequências jurídicas e humanitárias.
  • tal mobilização desvia recursos, atenção e energia de uma organização cujo foco declarado principal é a reforma agrária e a justiça social no Brasil, para atividades extraterritoriais de difícil regulação.

Em resumo: a fronteira entre solidariedade internacional legítima e envolvimento paramilitar ou pré-militar é tênue, e a proposta pende perigosamente para o segundo lado — o que exige altíssimo grau de responsabilidade, transparência e respaldo legal, que não estão claros.

2. A instrumentalização da crise venezuelana

A situação da Venezuela é complexa: o governo Maduro é acusado de autoritarismo, de violações de direitos humanos, de colapso econômico e social, de utilização de instrumentos de repressão contra a oposição. Integrar-se a esse governo como “aliado” ou “apoiador” não é um ato neutro. A proposta de Stédile de enviar militantes ao país pressupõe que o governo venezuelano é legitimamente vulnerável e que “o povo” precisa de apoio externo — e isso reduz a complexidade da crise a uma simples disputa “imperialista vs. povo venezuelano”.

Exemplos de crítica:

  • O envio de voluntários para um governo que enfrenta acusações severas de autoritarismo feriria o princípio da autonomia dos movimentos sociais: em vez de solidariedade crítica, poderíamos estar diante de alinhamento político-campista.
  • O risco é que o MST, com esta iniciativa, torne-se participante de uma arena de geopolítica internacional (EUA vs Venezuela) de que talvez não tenha controle e cujas consequências não domina.
  • Para além da retórica anti-imperialista, a iniciativa pode esconder uma tentativa de projetar influência internacional ou de legitimar governos controversos, em vez de trabalhar com real foco nas causas centrais do movimento — reforma agrária no Brasil, luta contra a concentração de terras, soberania alimentar.

Assim, a proposta parece mais uma manobra simbólica ou propagandística do que uma lógica de intervenção consciente, focada e responsável.

3. Vulnerabilidade e responsabilidade dos militantes

Quando um líder convoca militantes para irem “ao estrangeiro” em contexto de crise ou tensão militar, é importante refletir sobre a segurança, os riscos jurídicos, a logística, os direitos humanos e as responsabilidades daqueles enviados. A declaração de Stédile (“não temos formação militar”) ainda assim admite entrarem “ao lado do povo… se houver uma invasão”. Isso gera graves preocupações:

  • Militantes podem estar expostos a situações de combate, repressão, guerra urbana, ainda que indiretamente. Não basta dizer que “não vão lutar”: a presença simbólica ou de apoio também pode implicar riscos.
  • Qual é o papel da direção do MST na proteção desses enviados? Há seguro? Há cláusulas de responsabilidade em caso de ferimentos, prisões, violações de direitos humanos?
  • Como será assegurada a autonomia dos enviados? Que tipo de cadeia de comando vão seguir? Estarão sob a jurisdição venezuelana ou brasileira? Que proteções terão?
  • Tal mobilização pode gerar repercussões negativas para o movimento no Brasil: se algo der errado lá — militarização, confrontos, prisões — isso pode virar escândalo ou acusação de “movimento paramilitar”.

Portanto, a proposta assume uma irresponsabilidade institucional: mover pessoas para um cenário geopolítico complexo sem garantias mínimas de segurança e clareza de funções.

4. Desvio de foco da missão original

O MST é historicamente um movimento centrado na luta brasileira pela reforma agrária, pela redistribuição de terras, pela produção de alimentos com justiça social. Embora internacionalismo e solidariedade sejam valores legítimos, o envio de brigadas à Venezuela aparece como desvio da missão central. Os riscos:

  • Consumir tempo, recursos e atenção em uma “frente internacional” em vez de fortalecer assentamentos, políticas agrícolas, mobilização no Brasil.
  • Criar expectativas nos militantes de que “internacionalismo” é prioridade, o que pode dispersar o engajamento local.
  • Gerar desgaste político: se a iniciativa falhar ou gerar controvérsia, o movimento brasileiro corre o risco de ser visto como “fora de foco” ou propagandístico.

Em suma: há uma incoerência entre a missão primeira do MST e esta proposta de envio internacional voluntário. Uma organização social precisa priorizar seu território, suas lutas estruturais, antes de aventuras externas.

5. Implicações éticas e de soberania

A proposta contém implicações éticas e de soberania que merecem crítica:

  • Intervir num país estrangeiro em crise — mesmo sob o pretexto de “solidariedade” — pode infringir o princípio da não-intervenção internacional ou ser percebido como conivência com regimes de forte concentração de poder.
  • Ao assumir que “os movimentos latino-americanos devem se colocar à disposição do governo venezuelano”, há uma naturalização de uma posição de apoio incondicional, o que torna difícil criticar eventuais irregularidades desse governo.
  • A submissão da autonomia de um movimento social à lógica de governo estrangeiro ou à geopolítica pode comprometer sua legitimidade: se o movimento apoia cegamente outro governo, compromete o princípio de melhoria das condições de vida, independente de regimes, e abre margem para instrumentalização.

6. Consequências políticas internas e externas para o Brasil

Finalmente, a proposta possui impactos importantes no âmbito doméstico e internacional:

  • Politicamente, pode gerar desgaste para o MST e para as alianças que ele mantém — inclusive com partidos ou governos no Brasil que busquem moderação. Pode alimentar críticas da oposição de que o movimento está “metido em política internacional” em vez de “ajudar no Brasil”.
  • Em termos de soberania nacional, a participação de organizações brasileiras em ações no exterior pode ser interpretada como envolvimento do Brasil em relações internacionais de rede paralela, o que pode gerar tensão diplomática.
  • Juridicamente, há risco de enquadramento de ação como “mercenarismo” ou “intervenção estrangeira”, sancionável dependendo da legislação internacional ou ainda penal. Mesmo que “só cozinhar feijão”, a presença voluntária em zona de conflito é altamente sensível.

Conclusão

A proposta de João Pedro Stédile de enviar militantes do MST à Venezuela — mesmo sob o pretexto de “apoio civil” — revela uma série de falhas estratégicas, éticas e de responsabilidade institucional. Ela investe em simbologia internacionalista em detrimento do foco local e da missão principal do movimento, arrisca a segurança e autonomia dos militantes, normaliza o apoio a regimes controversos, e insere o movimento brasileiro em uma dinâmica de geopolítica que claramente ele não controla.

Uma organização social com pretensão de transformação e representatividade precisa agir com prudência, clareza de papéis, transparência, proteção dos envolvidos, e coerência com sua missão principal. Esta proposta, ao contrário, parece mais uma manobra ideológica de projeção — com muitos riscos e poucos ganhos concretos. Em minha avaliação crítica: a iniciativa deveria ser abandonada ou submetida a profundo debate interno, com definição muito clara de escopo, responsabilidades, salvaguardas e prioridade às lutas domésticas.

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