Este artigo foi (incrivelmente) publicado na Folha de São Paulo no dia 16/06/23.
Por Glenn Greenwald.
Um juiz agindo sozinho como censor chefe é o aumento dos valores antidemocráticos
Como ocorre com regularidade no Brasil, o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), emitiu uma ordem na terça-feira (13) considerando que todas as plataformas da internet banissem um cidadão brasileiro, sob o argumento, decidido por conta própria, sem julgar ou qualquer outro processo, de que ele estaria “divulgando informações fraudulentas”. O mais recente alvo do ministro é o podcaster Monark, que Moraes já havia proibido de falar na internet.
A ordem obriga Facebook, Instagram, Twitter, Telegram, Rumble e Discord a banir imediatamente todas as páginas do podcaster. O não cumprimento imediato resulta em multa diária de R$ 100 mil.
O novo pe
Naquela ocasião, Moraes ordenou que as mesmas plataformas, com o acréscimo do YouTube, banissem imediatamente várias páginas de pessoas como Monark e parlamentares eleitos — incluindo o senador Alan Rick (União-AC) e o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG).
Além da censura em si, o que mais chamou a atenção foi a total falta de devido processo legal, direito fundamental garantido pelo artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal de 1988.
A ordem de Moraes em janeiro foi dada sem qualquer provocação do MPF (Ministério Público Federal) ou de qualquer outra instituição —uma prática recorrente, como ao proibir no mês passado que Google e Facebook criticassem a PL das Fake News.
Aqueles que foram silenciados não receberam avisos da ordem de censura, muito menos tiveram a oportunidade de contestá-la. Moraes exigia que as plataformas “tomassem medidas para manter a confidencialidade” da decisão.
Além dos problemas de censura e devido processo legal, levanta-se novamente a questão fundamental: que autoridade legal o ministro Moraes possui para ordenar plataformas de tecnologia a proibir cidadãos brasileiros de serem ouvidos?
Mesmo que alguém comemore o fato de Monark e outros sejam silenciados, é absolutamente crucial para uma democracia saudável que um juiz ou qualquer outro funcionário tenha o respaldo legal para emitir ordens. Sem isso, a ação de Moraes é, por definição, um grave abuso de poder, uma violação ao Estado de Direito e uma ameaça antidemocrática.
A linguagem usada por Moraes, tanto no despacho de janeiro quanto no mais recente, segue claramente a resolução 23.714/22 do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que confere ao presidente do tribunal (o próprio Moraes) poderes para exigir de plataformas a remoção de “desinformação, identificada pela publicação contumaz de informações falsas ou descontextualizadas sobre o processo eleitoral”. A justificação desses poderes extraordinários era a necessidade de proteger a “integridade do processo eleitoral”.
Mesmo quando confinado apenas ao segundo turno da eleição presidencial, esse poder —que permitia a um único juiz, por conta própria, ordenar a censura de reportagens— já era extremamente controverso.
Inúmeros artigos na mídia internacional alertaram que a resolução era perigosa, dois deles publicados no New York Times (com os títulos “Para combater mentiras, o Brasil dá poder a um homem sobre o discurso online” e “Para defender a democracia, o Supremo Tribunal Federal está indo longe demais?” ).
Textos semelhantes na Associated Press (“A cruzada de um juiz testa limites da liberdade de expressão no Brasil”) e no The Washington Post notaram o quão extremo foi essa medida de censura.
No Brasil, entretanto, a maior parte da mídia corporativa aplaudiu os novos poderes de censura e a forma como foram usados — da mesma maneira que aplaudiu praticamente todas as ações igualmente extremas do ex-juiz federal Sergio Moro na Lava Jato.
Talvez o alerta mais eloquente e enfático no país contra a medida tenha vindo de uma ministra do STF. No dia em que a resolução de censura do TSE foi adotada, Cármen Lúcia descreveu uma das decisões tomadas como “um caso extremamente grave, porque de fato nós temos uma jurisprudência no STF, na esteira da Constituição, no sentido de impedimento de qualquer forma de censura”.
Ela ainda alertou que “medidas como essas [podem] ser um veneno ou um remédio”. Explicando que esses novos poderes “me preocupam enormemente”, ela declarou: “não se pode permitir a volta de censura sob qualquer argumento no Brasil”.
Para amenizar as preocupações generalizadas de que o Brasil estava novamente se tornando um país de censura, Cármen Lúcia garantiu que a medida era temporária, a ser usada apenas durante a eleição de 2022. Esses poderes extraordinários de censura, ela deixaram claro, expirariam imediatamente após o termo da disputa. “É um caso específico em que estamos na iminência de ter o segundo turno das eleições”, disse a ministra. “A caminhada é até o dia 31/10, exatamente um dia subsequente ao do segundo turno.”
Essa afirmação de Cármen Lúcia se baseia na linguagem clara do texto da resolução do TSE, em cujo subtítulo lê-se: “dispõe sobre o enfrentamento à desinformação que interrompeu a integridade do processo eleitoral”.
Era o entendimento comum e amplamente aceito de que os poderes extraordinários conferidos a Moraes expirariam após a eleição. Um especialista em direito eleitoral citado pela BBC Brasil, o advogado Alberto Rollo, defendeu amplamente a resolução. “Acho que isso mostra uma preocupação extrema do TSE nesta última semana de campanha […]. É elogiável querer proteger o eleitor contra notícias falsas.” E acrescentou: “Mas é discutível mudar a regra do jogo aos 40 minutos do segundo tempo”.
Na época em que a resolução foi aplicada para desmonetizar vários canais do YouTube, o site jurídico Jota também deixou claro o entendimento comum de que esses poderes cessariam quando as eleições terminassem. “A ministra Cármen Lúcia destacou que há jurisprudência no Supremo Tribunal Federal impedindo a censura, mas ela entendeu que, em nome da lisura eleitoral e da situação excepcionalíssima, a exibição do documentário [ “Quem Mandou Matar Jair Bolsonaro?”, da produtora Brasil Paralelo ] pode ficar suspensa até 31 de outubro.”
O site também jurídico ConJur explicou que o objetivo da resolução do TSE era “conter a explosão do uso de desinformação para desequilibrar o debate no segundo turno das eleições presidenciais”.
Quando o STF decidiu aprovar a resolução, o Jota descreveu como “o poder de polícia da Corte Eleitoral no combate às fake news nas eleições de 2022”. Citou o ministro do STF Edson Fachin ao enfatizar a natureza temporária do poder: “A disseminação de notícias falsas, no curto prazo do processo eleitoral, pode ter a força de ocupar todo o espaço público, restringindo a livre circulação de ideias”.
A caducidade da resolução após a eleição era também o planejamento da recente e frustrada tentativa de aprovar no Congresso o PL das Fake News. Um dos propósitos centrais desse projeto de lei era conferir ao Judiciário os próprios poderes que Moraes está exercendo agora: ordenar, por conta própria, a remoção de discursos na internet considerados falsos.
Se o PL das Fake News tivesse sido aprovado, Moraes claramente teria embasamento legal para emitir tais ordens. Como isso ainda não ocorreu, não há respaldo para as decisões do ministro.
O que realmente ocorre aqui é tão claro quanto perturbador. Durante a Lava Jato, muitas figuras políticas e meios de comunicação ficaram felizes com os resultados das decisões de Sergio Moro, sem se importar com os vários abusadores. A mentalidade dos defensores da Lava Jato era a de que “os fins justificam os meios”. Enquanto os “maus” iam para a prisão, poucos se importavam com os princípios legais, vistos como uma trivialidade irrelevante.
A mesma visão prevaleceu agora. Quem questiona a autoridade legal de Moraes é acusado de “defensor dos terroristas” — assim como os que questionaram Moro foram acusados de “defensor dos corruptos”.
Como suas ordens de censura e prisão normalmente visavam inimigos de facções do establishment, tanto na política quanto na mídia, Moraes se transformou no tipo de herói que Moro era. Poucos se importam se ele tem autoridade legal para emitir as ordens que impõem. Os resultados —os fins— justificam quaisquer meios que ele use.
No entanto, Moraes se tornou tão radical que até alguns de seus defensores mais entusiasmados estão finalmente questionando se ele foi longe demais. Segundo o jornal O Globo, até “membros da cúpula petista e advogados auxiliares ao partido têm externado, em conversas reservadas, certa preocupação com os poderes” do ministro.
Apesar do “reconhecimento de que o magistrado teve papel essencial na manutenção da democracia e na realização das eleições de 2022 que elegeram Lula”, os petistas têm em que “o ministro, em algum momento, mire integrantes do partido e do próprio governo”, diz o jornal.
Nenhuma democracia pode sobreviver à mentalidade de que “os fins justificam os meios”. Não existe ordem judicial positiva ou sã sem fundamento legal, por mais desprezo que se tenha pelo punido.
Assim como não se pode salvar uma aldeia destruindo-a, assim como a Lava Jato não conseguiu combater a corrupção por métodos corruptos, não se pode salvar a democracia com meios antidemocráticos. Um juiz agindo sozinho como censor chefe, sem autoridade legal, é o aumento dos valores antidemocráticos.