Entre Dois Supremos: Liberdade, Poder e Interpretação

*Por Leonardo Corrêa

É difícil encontrar contraste mais eloquente entre dois tribunais supremos do que aquele que hoje separa a Suprema Corte dos Estados Unidos (SCOTUS) e o Supremo Tribunal Federal brasileiro. Um ainda se reconhece como guardião do texto. O outro já se imagina seu autor. Um opera nos limites da lei. O outro se move nas promessas abertas dos princípios. Um ainda se submete à Constituição. O outro a interpreta conforme os “valores do presente”.

Enquanto no Brasil o STF dissolve direitos fundamentais por meio da retórica da proporcionalidade, nos EUA a SCOTUS reafirma, com clareza cada vez mais unânime, três pilares que também sustentam os princípios da Lexum: o Estado existe para preservar a liberdade; a separação de poderes é essencial para a Constituição; e, a atribuição e dever do Judiciário dizer o que a lei é, não o que ela deveria ser.

A decisão unânime em Ames v. Ohio Department of Youth Services (2025) reafirma a igualdade como direito individual, sem distinções morais ou identitárias impostas pelo Judiciário. No caso Smith & Wesson v. México, a Corte rejeitou a tentativa de responsabilizar fabricantes de armas por crimes cometidos por terceiros — um esforço disfarçado de justiça social que violaria o princípio da imputação objetiva e transformaria o Judiciário em legislador penal. Ali, a Corte reafirmou que nem a pressão internacional nem o clamor político autorizam o abandono do devido processo legal.

A mesma contenção se observou em Martin v. United States, onde a SCOTUS reconheceu os limites constitucionais do Judiciário diante da imunidade soberana. E em Catholic Charities Bureau v. Wisconsin, em que reafirmou que o exercício religioso não pode ser esmagado por critérios administrativos de “interesse público” definidos pelo Executivo ou pelo Judiciário. Em todas essas decisões, há um denominador comum: fidelidade à Constituição, autocontenção institucional e respeito à liberdade como valor prioritário.

Do outro lado do continente, o STF brasileiro caminha na direção oposta. A liberdade de expressão se tornou condicional, os direitos do artigo 5º são “ponderáveis”, a separação de poderes virou um obstáculo à vontade moral do intérprete. Já não se julga com base na lei, mas no que os ministros acham que ela “deveria dizer”. O texto normativo é tratado como sugestão, e os precedentes são escolhidos conforme a ocasião política.

Esse é o legado do neoconstitucionalismo tropical. Um modelo que dissolve a rigidez das normas em nome da fluidez dos princípios. Que legitima o protagonismo judicial como virtude e naturaliza a expansão do Judiciário como “evolução democrática”. É o modelo que autoriza uma Corte a ignorar a literalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, a submeter a liberdade ao “dever de cuidado” das plataformas, e a transformar o juiz em curador do debate público.

Na raiz dessa diferença entre as duas supremas cortes está o compromisso com a liberdade e a humildade institucional. A SCOTUS ainda reconhece que sua missão não é salvar o mundo, mas preservar o pacto constitucional. Já o STF parece convencido de que sua função é aperfeiçoar a sociedade — mesmo que isso signifique atropelar o Congresso, ignorar o texto e relativizar os direitos fundamentais. Não por acaso, o Supremo brasileiro acumula hoje mais poder que qualquer outro órgão em uma democracia liberal moderna. E quanto mais se afasta do seu papel, mais exige reverência.

É por isso, aliás, que a Lexum existe. Para dizer não. Para reafirmar, com clareza e técnica, que o Estado existe para preservar a liberdade, não para tutelá-la. Que os Poderes são separados para conter o poder, não para compartilhá-lo em nome de consensos morais. E que o juiz tem o dever de aplicar a lei, mesmo quando discorda dela.

A lição americana é simples: a República sobrevive quando o juiz conhece seus próprios limites. O drama brasileiro é trágico: a República se desfaz quando ele os abandona.

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.

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