Editorial do Jornal O Globo
Foi lastimável a adesão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à petição apresentada pela África do Sul à Corte Internacional de Justiça (CIJ), em Haia, acusando Israel de ações e omissões de “caráter genocida” na guerra contra o grupo terrorista Hamas na Faixa de Gaza. Ao atender ao pedido do embaixador palestino no Brasil, Lula viola a tradição de equilíbrio da diplomacia brasileira, banaliza uma acusação que só deveria ser feita com a maior parcimônia, em atitude que fortalece a vertente mais insidiosa do antissemitismo contemporâneo.
No caso apresentado em Haia, os sul-africanos acusam Israel de ter “falhado ao prevenir genocídio” e ao coibir a “incitação pública ao genocídio”. “Com mais gravidade, Israel se engajou, está engajado e arrisca engajar-se ainda mais em atos genocidas contra o povo palestino em Gaza”, afirma a petição. A acusação é embasada pela contabilidade das mortes na guerra, pela descrição do sofrimento atroz a que tem sido submetida a população palestina e por uma sucessão de declarações de autoridades e personalidades israelenses a que se atribui “intenção genocida”.
Israel não deve estar imune às consequências jurídicas da campanha contra o Hamas. A devastação de Gaza, a perda irreparável de vidas inocentes, o sofrimento da população civil, submetida a bombardeios e privações, devem estar sob escrutínio da comunidade internacional para que se apurem possíveis crimes de guerra ou violações de direitos humanos. Nada disso deve ser esquecido, mesmo levando em conta que terroristas usam a população civil como escudo, ao mesmo tempo que se protegem de forma covarde em túneis subterrâneos. Mas uma coisa é examinar as condutas de Israel. Outra bem diferente é falar em “genocídio”.
A palavra foi cunhada justamente para descrever o crime dos nazistas contra judeus e outras minorias. Foi descrita na Convenção do Genocídio de 1948 como tipo penal definido por atos cometidos “com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Só indivíduos são julgados por genocídio, jamais um país. A África do Sul urdiu uma manobra jurídica, acusando Israel de violar a convenção sobre o tema. O foro internacional que julga genocídio nem é a CIJ, mas o Tribunal Penal Internacional, que Israel não reconhece.
Nas cortes, é difícil comprovar o “crime dos crimes”, pois não basta demonstrar culpa, é preciso demonstrar a intenção de eliminar o grupo. Nesse ponto, a acusação endossada por Lula é fragílima. Israel sempre afirmou estar em guerra contra o Hamas — um grupo terrorista —, não contra palestinos, árabes ou muçulmanos. As declarações tresloucadas de deputados, ministros e personalidades citadas na petição não bastam para demonstrar intenção do Estado ou de qualquer autoridade. O Exército de Israel diz adotar cuidados para poupar civis e garantir o fluxo de auxílio humanitário. Já comprovou o uso de hospitais e escolas como instalações militares pelo Hamas.
Por tudo isso, as acusações deverão ser refutadas em seu tempo. Ainda que a CIJ ordene medidas emergenciais, é difícil haver efeito na guerra. O caso em nada ajudará a luta justa — apoiada pelo Brasil — em favor de um Estado palestino ao lado de Israel. Sua única contribuição, ao associar as palavras “genocídio” a Israel, será avivar o paralelo ofensivo entre nazistas e o Estado judeu, obsessão do antissemitismo contemporâneo. Com o aval de Lula.
O Globo