O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou um despacho que, se interpretado de forma literal, intima todos os tribunais do país para que “garantam” o acesso a seus banheiros com base na identidade de gênero.
A ordem consta de um decreto de 8 de agosto e está dividida em duas partes.
A primeira parte pede que os tribunais informem se já possuem alguma política para permitir que o acesso aos banheiros se dê conforme o gênero de identificação. Em outras palavras, que homens que se identificam como mulheres possam usar o banheiro feminino.
A segunda parte determina que os tribunais “garantam o acesso a esses espaços com vestimenta compatível com o gênero de identificação”.
A íntegra do despacho, assinado pelo conselheiro Guilherme Feliciano, é esta: “Intimem-se todos os tribunais brasileiros para que, no prazo de 15 (quinze) dias, informem se possuem algum ato normativo ou política que assegure aos seus servidores, magistrados, prestadores de serviços e público em geral o livre acesso a todos os espaços de uso comum dos prédios do Judiciário, incluindo banheiros e vestiários, em compatibilidade com o gênero de identificação, assim como também garantam o acesso a esses espaços com vestimenta compatível com o gênero de identificação.”
O despacho
A decisão do despacho teve como base o pedido de providências proposto por várias entidades que representam grupos LGBTQIA+. A solicitação é que seja garantido o acesso de pessoas transgênero nos fóruns e serventias extrajudiciais “sem a exigência de indumentária condizente com o gênero biológico, assim como o acesso aos banheiros desses mesmos locais de acordo com a identidade de gênero autodeclarada”.
Os requerentes responderam que, embora o STF proteja os direitos da população LGBTQIA+, o julgamento dessas ações pode demorar anos e a violência contra pessoas trans não pode esperar. Eles argumentam que o CNJ tem a autoridade para agir e dar uma solução imediata, assim como fez em 2013 ao permitir o casamento civil homoafetivo antes de uma decisão explícita do STF.
O processo não está disponível no site nem foi repassado pelo CNJ, embora a Gazeta do Povo tenha pedido ao CNJ, por diversas vezes, acesso ao material. O primeiro despacho registrado no site data de dezembro de 2022. O processo foi suspenso por um tempo, à espera de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema.
O STF decidiu cancelar a repercussão geral do tema e não julgou o mérito do caso. Por isso o processo no CNJ foi retomado. Após a retomada, o CNJ pediu aos requerentes que informassem sobre o andamento de outras ações (ADPFs) no STF que tratam de temas semelhantes para ver se elas poderiam resolver o problema.
O CNJ também pediu que as organizações representativas da população trans e negra sejam convidadas a se manifestar no processo. O objetivo é que elas possam dar suas opiniões sobre o acesso de pessoas que se identificam transgênero a espaços públicos do Judiciário, outras barreiras que existam — como a exigência de vestuário ou o uso do nome social — e a necessidade de capacitar funcionários do Judiciário sobre questões de gênero.
Texto mal redigido?
O despacho do CNJ é problemático porque, na leitura mais natural, o órgão está determinando que os tribunais deixem de separar os banheiros por sexo.
Um professor de Literatura e Linguística de uma universidade federal, que preferiu não ser identificado na reportagem, afirma que o texto, se interpretado ao pé da letra, estabelece que as pessoas podem entrar com qualquer roupa em ambos os banheiros, independentemente do sexo e até mesmo da identidade de gênero: “Hoje, em que ambos os gêneros usam peças comuns, como calças jeans ou sociais e camisas, isso pode resultar em qualquer um entrando em qualquer banheiro”, afirma.
Ao mesmo tempo, juristas ouvidos pela Gazeta do Povo afirmam que um despacho não seria a ferramenta adequada para que os tribunais fossem obrigados a adotar uma política específica. Por isso, o mais provável é que o documento seja apenas um pedido de informação (mal redigido).
É o que pensa Flávio Pansieri, doutor em Direito e professor da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). “Na minha percepção, o texto está dúbio e mal escrito. Isso não traz segurança para os tribunais sobre como agir. Parece a mim que os tribunais têm que informar como agem no momento, mas o despacho do CNJ deveria ser mais direto e mais claro”, avalia.
Procurado pela reportagem, o CNJ não esclareceu se o despacho de 8 de agosto foi um pedido de informações mal redigido ou se de fato exigiu que os tribunais permitissem o uso dos banheiros conforme a identidade de gênero, nem como está a situação passado o prazo para os tribunais informarem suas situações sobre o tema.
Com informações Gazeta do Povo