Não são generais de farda nem ditadores declarados que hoje silenciam vozes no Brasil. É o próprio Poder Judiciário, investido de autoridade constitucional, que vem progressivamente extrapolando seus limites e transformando medidas cautelares em instrumentos de censura. Quando ministros decidem não apenas restringir direitos de um réu, mas estender a mordaça a seus familiares, apoiadores ou mesmo a plataformas digitais estrangeiras, a democracia deixa de ser garantida pelo Direito e passa a ser constrangida por decisões judiciais personalistas.
A decisão que proibiu o ex-presidente Jair Bolsonaro, recentemente condenado, de utilizar redes sociais, inclusive “por intermédio de terceiros”, afronta diretamente o princípio da pessoalidade da pena, insculpido no artigo 5º, inciso XLV, da Constituição Federal: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”. A restrição não apenas vedou a manifestação direta do réu, mas também proibiu que familiares ou aliados transmitam suas falas, sob pena de sanção. Esse tipo de extensão cautelar equivale a uma sanção coletiva, incompatível com o princípio da intranscendência da pena e com a própria noção de responsabilidade penal individual.
“Não são generais de farda nem ditadores declarados que hoje silenciam vozes no Brasil. É o próprio Poder Judiciário, investido de autoridade constitucional, que vem progressivamente extrapolando seus limites e transformando medidas cautelares em instrumentos de censura”
O caso da plataforma Rumble, suspensa nacionalmente por descumprir ordens judiciais de retirada de conteúdo, insere-se no mesmo contexto de hipertrofia jurisdicional. O Supremo Tribunal Federal, ao bloquear um serviço global de comunicação, extrapolou as balizas do princípio da proporcionalidade e do princípio da legalidade estrita, ao impor medida que não encontra paralelo em democracias consolidadas. O Judiciário assumiu, na prática, a função de censor digital, determinando o que pode ou não circular em território nacional. Quando um tribunal transforma-se em gatekeeper da internet, substitui a função legislativa e afronta o princípio da separação dos Poderes.
Não se trata aqui de imunizar agentes políticos ou plataformas de responsabilidade. O que está em jogo é a banalização de medidas que, em nome de combater abusos digitais, instauram abusos ainda maiores. O STF reconheceu recentemente a figura do “assédio judicial” contra jornalistas, vedando múltiplas ações para constranger a imprensa. Contudo, paradoxalmente, a Corte não hesita em praticar um assédio institucional contra dissidentes políticos, ao estender a eles e a seus círculos pessoais um regime de exceção comunicacional. Essa contradição expõe o descompasso entre discurso jurídico e prática jurisdicional.
Ao impor silenciamento que ultrapassa o réu, atinge familiares e alcança até serviços de comunicação internacionais, o Judiciário brasileiro coloca em xeque não apenas a liberdade de expressão, mas o próprio núcleo do Estado de Direito. O Direito Penal da culpabilidade individual cede lugar a um Direito Penal do inimigo, onde a excepcionalidade se torna regra e a Constituição é reinterpretada segundo conveniências políticas do momento. A história já ensinou: regimes autoritários nascem quando tribunais se convencem de que podem ser legisladores e censores. O Brasil corre esse risco e o silêncio que hoje recai sobre alguns, amanhã poderá alcançar a todos.
O primeiro acréscimo grave dessa prática é a corrosão do princípio da reserva legal, que estabelece que somente a lei pode criar restrições de direitos. Medidas cautelares que inovam no ordenamento, ampliando as fronteiras da sanção para além do réu, instauram um regime de insegurança jurídica que ameaça a própria previsibilidade do Direito. A Constituição exige que as limitações a direitos fundamentais estejam expressamente previstas em lei, e não emanem de construções voluntaristas do Judiciário.
O segundo problema é a instrumentalização do processo penal como mecanismo de controle político. Quando medidas cautelares são utilizadas não para assegurar a efetividade da persecução penal, mas para restringir a manifestação de ideias ou sufocar adversários, o processo perde sua natureza garantidora e converte-se em ferramenta de intimidação. A lógica da jurisdição penal deixa de ser de proteção ao cidadão contra o arbítrio estatal e passa a operar como braço executor de agendas circunstanciais.
O terceiro ponto reside na afronta ao princípio da liberdade de expressão, consagrado no artigo 5º, inciso IX, e reforçado pelo artigo 220 da Constituição Federal. A vedação à manifestação por meio digital, estendida a familiares e apoiadores, compromete o núcleo essencial desse direito, que é justamente a possibilidade de difundir ideias, mesmo que impopulares ou críticas ao poder constituído. Sem a livre circulação da palavra, não há espaço para o contraditório social nem para o pluralismo político que fundamenta a ordem democrática.
O quarto aspecto é o efeito simbólico dessas decisões. Ao impor restrições de maneira ampla e difusa, o Judiciário transmite uma mensagem de intimidação coletiva, induzindo à autocensura não apenas dos diretamente afetados, mas de todos aqueles que temem represálias semelhantes. O medo de sanções passa a condicionar a conduta discursiva da sociedade, instaurando um estado de conformismo que é incompatível com o ambiente democrático de debate e deliberação pública.
Por fim, o quinto ponto é a erosão do princípio da separação dos Poderes. Ao assumir para si a função de definir o que pode ou não ser dito, e de quem pode ou não transmitir ideias, o Judiciário invade a esfera legislativa e executiva, legislando por decisões e administrando a vida pública com base em critérios subjetivos. Essa hipertrofia institucional desequilibra o arranjo constitucional e gera uma concentração de poder que fragiliza as garantias contra o arbítrio.
O risco é claro: um Judiciário sem freios torna-se um poder hegemônico, impermeável ao controle democrático e hostil à liberdade.
Gregório Rabelo, advogado e empresário, é especializado em Direito Constitucional e Legislativo. Atua como assessor jurídico-legislativo na Câmara dos Deputados.