Por César Dario
Foram publicadas na imprensa e redes sociais postagens que indicam a existência de investigações paralelas, ou seja, extra autos, realizadas no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral, a fim de instruir investigações em curso sobre os atos de 8 de janeiro perante a Excelsa Corte.
Para esse efeito foram buscadas nas redes sociais postagens que indicassem ser o investigado avesso a determinado partido político, a pessoas que dele faziam parte ou a uma pessoa em especial.
E, para piorar a questão, já que não é possível ao magistrado produzir prova de ofício na fase investigatória, ou seja, investigar, estas investigações e as provas amealhadas foram sonegadas da defesa, provavelmente por serem absolutamente ilegais, o que é causa de nulidade absoluta do processo por haver flagrante afronta aos princípios da ampla defesa e do contraditório.
O advogado de qualquer acusado tem o direito constitucional de conhecer todas as provas existentes, mesmo que fora do caderno probatório, para que possa exercer com toda amplitude possível a defesa de seu cliente. Do contrário, há quebra da paridade de armas, já que a acusação saberá de fatos desconhecidos pela defesa, o que também é causa de nulidade absoluta. As partes (acusação e defesa) devem sempre ser tratadas em igualdade de condições.
Não é possível ao membro do Ministério Público e ao Magistrado montarem estratégias para o tramite processual, porque, tanto um quanto o outro, representam o Estado e a finalidade deles é a busca da verdade real e não a condenação ou a absolvição a qualquer custo, quebrando regras processuais.
Fico imaginando o que ocorreria se um magistrado de primeiro ou segundo grau de jurisdição não desse acesso integral aos autos de uma investigação ao advogado do suspeito, investigado ou acusado. No mínimo, seria alvo de um processo disciplinar, podendo, inclusive, ser processado por crime de abuso de autoridade.
Não sou eu que afirmo isso, mas a legislação, que, infelizmente, tem sido muito maltratada na atualidade.
Para possibilitar o amplo acesso dos advogados a autos de investigação de qualquer natureza, a Lei 13.245, de 12.01.2016, deu nova redação ao art. 7º, inc. XIV, da Lei 8.906, de 04.07.1994 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil). Assim, o advogado poderá examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital. A procuração será necessária apenas para o exame dos autos que correm em sigilo (art. 7º, § 10).
E isso vale para todas as instâncias do Poder Judiciário sem nenhuma exceção ou hipótese, já que as normas positivadas vigem para todos os procedimentos e em qualquer grau de jurisdição.
Por outro lado, como exceção à regra, a fim de que não ocorra risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências investigatórias, a autoridade que conduz as investigações poderá delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não documentadas nos autos (art. 7º, § 11).
Vejam bem. Estando as provas dentro do caderno investigatório, seja nos autos principais ou apensadas a eles, não podem ser sonegadas do investigado (fase de investigação) ou do acusado (fase processual).
As diligências em andamento que possam comprometer as investigações deverão ser realizadas em procedimento à parte e, quando finalizadas, todo o procedimento e material produzido deverão ser disponibilizados à defesa no chamado contraditório diferido (que ocorre após a realização do ato procedimental). Isso é muito comum nas interceptações telefônicas ou de telemática, que devem necessariamente correr em sigilo para não atrapalhar as investigações e o próprio ato.
Entretanto, isso não implica ser o procedimento secreto, o que é vedado em nosso ordenamento jurídico. Qualquer pessoa investigada deve saber o teor da investigação e as provas existentes contra ela. Não podem, assim, as diligências estar constantemente fora do caderno investigatório, a pretexto de não atrapalhar o êxito das investigações.
Trocando em miúdos, não pode existir prova secreta que de algum modo tenha influído no ânimo do Magistrado. Mesmo que essa prova não fundamente expressamente uma decisão qualquer, ela contamina e espírito do julgador, que buscará de todas as formas possíveis proferir a decisão de acordo com aquela prova sonegada da defesa.
A respeito do tema, a Excelsa Corte editou a Súmula Vinculante 14, que propicia acesso irrestrito do advogado aos autos de investigação criminal realizado por órgão com competência de polícia judiciária, em que haja interesse de seu representado. Diz a Súmula: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.
Há de ser observado, porém, que a Súmula Vinculante possibilita acesso somente às provas já documentadas e que façam parte de um procedimento investigatório de órgão com competência de polícia judiciária, quando disser respeito ao exercício do direito de defesa. Diligências em andamento não são alcançadas pela Súmula Vinculante, ou seja, para ser possível o acesso às provas pelo advogado elas deverão estar anexadas aos autos do inquérito policial ou outro procedimento investigativo. Trata-se de interpretação lógica, pois, caso contrário, o conhecimento delas obstaria a correta apuração da infração penal.
Por conta da limitação da súmula vinculante e visando o acesso a todo procedimento investigatório realizado por qualquer autoridade competente (Delegado de Polícia, Membro do Ministério Público, Auditor da Receita Federal, dentre outras), ocorreu a alteração legislativa.
Oportuno ressaltar que, ocorrendo a violação dos direitos do advogado de obter amplo acesso aos autos de investigação (inc. XIV do art. 7º), o fornecimento incompleto de autos ou de que houve a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo, importará responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade do responsável, quando agir com o intuito de prejudicar o exercício da defesa (art. 7º, § 12), podendo o agente que assim proceder ser penalizado nos termos do art. 32 da Lei nº 13.869/2019, que diz: “Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa”.
Lembro, porém, que para a ocorrência desta espécie de delito há necessidade do elemento subjetivo do tipo específico consistente em ter a intenção de abusar da autoridade (com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal), anotando que a divergência na interpretação de normas ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade, nos exatos termos dos §§ 1º e 2º, do art. 1º da Lei nº 13.869/2019.
Ressalto, ainda, que, a novel norma tem de ser interpretada de modo a não atrapalhar o êxito das investigações. Deve ser preservada a ampla defesa, mas esse direito não pode ser exercido a ponto de prejudicar investigações que correm em sigilo e que ainda não tenham sido documentadas nos autos. Nessa hipótese, o contraditório será exercido em outro momento (diferido), de forma a não ocorrer prejuízo ao exercício do direito de defesa.
Com efeito, podendo o acesso do advogado a diligências em andamento, que ainda não estejam juntadas aos autos, causar risco ao êxito das investigações, deve a autoridade competente, fundamentadamente, limitar o acesso a provas que naquele momento não possam ser conhecidas pela defesa. Do contrário, não haverá mais investigações frutíferas que dependam do sigilo das diligências, o que certamente não é o espírito da lei.
Cuida-se de medida excepcional, já que a regra é a publicidade das investigações para o investigado e a defesa. Não pode existir procedimento secreto e que perdure indefinidamente, obstando o acesso dos investigados às provas contra si existentes, o que viola a ampla defesa e o contraditório, já que qualquer pessoa alvo de investigação deve ter conhecimento de todos os elementos de prova existentes em seu desfavor para que possa montar sua defesa e não ser surpreendida no caso de ser proposta a ação penal.
Oferecida a denúncia, imperioso que a defesa do denunciado tenha acesso a toda prova produzida contra ele ou que tenha relação com ela, mesmo que indiretamente, uma vez que podem existir elementos que refutem ou fragilizem a acusação, ou mesmo lhe deem um álibi, o que certamente influirá no espírito do julgador a ponto de poder rejeitar ou não receber a inicial acusatória, ou, ainda, no caso de seu recebimento, proferir a sentença.
Com o oferecimento da denúncia presume-se que não existam mais investigações em curso e que não há mais como o conhecimento das provas produzidas possa comprometer o êxito das investigações, que estão encerradas com o relatório da autoridade policial. Evidente que, por algum motivo, exista alguma diligência ainda pendente, somente ela poderá ser realizada em sigilo e, encerrada, a defesa tem o direito constitucional dela ter ciência para poder contrariá-la, se o caso, e produzir a contraprova, em homenagem aos princípios do contraditório e da ampla defesa, integrantes do devido processo legal.
É importante salientar que o sigilo das investigações não pode ser oposto ao Ministério Público, que, além de ser o titular da ação penal pública (art. 129, I, da CF), atua como fiscal da ordem jurídica. Ora, se o Ministério Público é o destinatário da prova produzida no inquérito policial ou procedimento similar, exceto no caso de ação penal privada em que funciona como fiscal da ordem jurídica, é óbvio que, a qualquer momento, terá acesso aos autos, podendo, inclusive, requisitar diligências investigatórias (art. 129, VIII, da CF). Assim, não é possível obstar que o Órgão Ministerial tenha acesso aos autos do procedimento investigativo, que apura qualquer espécie de crime.
O que NUNCA pode ocorrer é a pessoa ser intimada ou conduzida para ser interrogada, mesmo que de forma travestida de depoimento como testemunha, e não saber do que se trata a investigação e o porquê de estar sendo inquirida. Tal proceder é absolutamente ilegal e não se coaduna com o devido processo legal e o estado democrático de direito. Toda e qualquer pessoa tem o direito de saber quais são as suspeitas que recaem sobre si e as provas existentes no caderno investigatório antes de ser inquirida, formal ou informalmente. Por isso, o interrogatório é o último ato processual por se tratar de meio de defesa, muito embora seu teor possa ser igualmente empregado como prova.
O mesmo pode ser dito em relação ao recebimento da denúncia. Viola a ampla defesa e o contraditório e, via de consequência, o devido processo legal, o advogado do denunciado ser obrigado a apresentar a defesa preliminar sem conhecer toda prova produzida, o que é básico no processo penal de todo país democrático. A defesa deve ter acesso a toda prova existente, mesmo extra autos, mas que possa de algum modo trazer elementos que lhe favoreçam, mormente quando se trata de casos complexos e com o envolvimento de várias pessoas em que a prova de um pode ter ligação direta ou indireta em relação ao outro.
Todas as pessoas podem e devem ser investigadas quando houver suspeita da prática de infração penal, civil ou administrativa. No entanto, nosso sistema constitucional prevê diversas garantias processuais que devem ser observadas por todas as instâncias do Poder Judiciário e demais órgãos da persecução penal, pressuposto do estado democrático de direito, que visa a salvaguarda de todos, independentemente de quem seja e da ilegalidade cometida.
Apurar crimes, sim. Ninguém em sã consciência e que esteja de boa-fé pode compactuar com atos contrários à democracia ou que impliquem crime de qualquer espécie. Entretanto, não é possível, a pretexto de apurar eventuais delitos deixar de se observar os princípios e regras constitucionais que preservam a regularidade das investigações e, por consequência, a garantia de produção probatória isenta de vícios, que poderão fundamentar eventual propositura de uma ação penal e a prolação de uma sentença penal condenatória.
Investigação sigilosa, claro que é possível, dentro dos parâmetros legais e com o amplo acesso do advogado, acusado, indiciado ou investigado às provas produzidas após sua finalização e antes do interrogatório na fase extrajudicial (formal ou informal) para que seja observado o contraditório e a ampla defesa. Já a investigação secreta, que ainda produza provas secretas, em que somente algumas pessoas integrantes da persecução penal tenham acesso, essa é vedada pelo nosso sistema normativo.
A investigação secreta, nos moldes que expusemos, torna inadmissíveis processualmente as provas produzidas e sua derivação, que são ilícitas por violação à ampla defesa, contraditório e devido processo legal, além de eventualmente caracterizar crime de abuso de autoridade por parte do agente público que assim proceder.
E isso vale para todas as medidas judiciais ou administrativas que tenham como fundamento a prática de crime comum, militar ou eleitoral, uma vez que os princípios do contraditório e da ampla defesa se irradiam para todos os processos judiciais ou procedimentos investigatórios (em menor escala) e sua violação importa ilicitude ou nulidade do ato e, a depender da hipótese, quando forem atingidos direitos fundamentais como a intimidade e liberdade de manifestação do pensamento, constrangimento ilegal.
Com efeito, ficando demonstrado que provas secretas foram empregadas processualmente, deve o processo ser declarado nulo em razão da ilicitude probatória que as torna inadmissíveis desde seu nascedouro, haja vista existir flagrante violação ao devido processo legal, notadamente à ampla defesa e ao contraditório.
Em direito, os fins nunca podem justificar os meios.
Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.