Quando ordenou uma série de medidas restritivas contra Jair Bolsonaro, em meados de julho, Alexandre de Moraes criou uma armadilha para o ex-presidente. Em uma decisão claramente abusiva e tão mal escrita que precisou de um esclarecimento posterior, que por sua vez esclarecia muito pouco, o ministro do STF impôs a Bolsonaro um silêncio sem declará-lo explicitamente, e na prática o ameaçou de prisão por atos cometidos por terceiros – algo que qualquer pessoa de bom senso, com ou sem conhecimento dos bons princípios do Direito Penal, consideraria absurdo. Pois o cerco se fechou nesta segunda-feira: coincidência ou não, no mesmo dia em que vinham à tona novas revelações contra o sistema totalitário instituído por Moraes no STF e no TSE para vigiar brasileiros, o ministro ordenou a prisão domiciliar de Bolsonaro.
Nas decisões anteriores, apesar de afirmar que “inexiste qualquer proibição de concessão de entrevistas ou discursos públicos ou privados”, Moraes dizia também que não admitiria a “instrumentalização de entrevistas ou discursos públicos como ‘material pré-fabricado’ para posterior postagens nas redes sociais de terceiros previamente coordenados”. Como qualquer coisa que Bolsonaro dissesse ou fizesse em público inevitavelmente chegaria às mídias sociais, a censura era mais que evidente, e o cenário estava montado para uma eventual prisão. O pretexto veio neste domingo, durante as manifestações contra Moraes que levaram dezenas de milhares de brasileiros às ruas em várias capitais brasileiras. Um de seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro, telefonou para o pai durante a manifestação no Rio de Janeiro; o deputado federal Nikolas Ferreira fez o mesmo em São Paulo. Até mesmo reportagens jornalísticas sobre o protesto foram invocadas na decisão de prisão domiciliar, demonstrando que, no fim das contas, Bolsonaro estava mesmo proibido de se manifestar, ainda que Moraes alegasse o contrário.
Alegando “proteger a democracia”, Alexandre de Moraes tem transgredido todos os limites que caracterizam a ordem democrática, com medidas inconstitucionais e abusivas
Como se não bastasse, Moraes ainda recorreu às ilações e falácias lógicas, já bastante frequentes em todas as suas decisões recentes, seja contra Bolsonaro, seja contra os manifestantes do 8 de janeiro. Onde Flávio Bolsonaro escreveu “obrigado, América, por nos ajudar a resgatar nossa democracia”, Moraes leu uma “clara manifestação de apoio às sanções econômicas impostas à população brasileira”. Tal avaliação reflete uma indigência jurídica enorme: primeiro, porque não havia citação alguma ao tarifaço – os Estados Unidos tomaram outras medidas relacionadas ao processo contra Bolsonaro, como a revogação do visto de Moraes e sua inclusão na Lei Magnitsky –; segundo, porque, mesmo que Flávio houvesse mencionado as tarifas, defender esse tipo de medida por parte de um governo estrangeiro não é crime no ordenamento jurídico nacional, mas mero exercício da liberdade de expressão, impossível de enquadrar em qualquer artigo da lei dos crimes contra o Estado de Direito.
O mero pedido de outro filho do ex-presidente, o vereador Carlos Bolsonaro, para que as pessoas seguissem seu pai nas mídias sociais, também foi citado por Moraes, ainda que tal pedido não desrespeitasse nenhuma determinação. Por fim, outro dos filhos, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, afirmou simplesmente “só meu muito obrigado. Sozinho a gente não faz nada, mas com fé em Deus nós venceremos!” em uma chamada de vídeo, mas bastou para Moraes enxergar uma “atuação coordenada dos filhos de Jair Messias Bolsonaro a partir de mensagens de ataques ao Supremo Tribunal Federal com o evidente intuito de interferir no julgamento da AP 2.668/DF”, embora não houvesse menção ao processo contra Bolsonaro no Supremo.
Qualquer estudante de Direito sabe que a lei penal precisa ser interpretada da forma mais restritiva possível, para evitar abusos contra a liberdade, um dos chamados “bens indisponíveis”. Mas Moraes inverteu completamente este princípio, para transformar qualquer fala – de um agradecimento à simples manifestação de esperança – em “ataque” à democracia, ao Supremo e ao Estado de Direito, em “coação”, em “atuação coordenada”, pressupondo-se sempre a intenção criminosa. Junte-se a isso o absurdo evidente, já citado acima, de se punir alguém por atos cometidos por terceiros, e as medidas adicionais, como a apreensão de todos os celulares de Bolsonaro (em um indicativo de que teremos mais “pesca probatória” adiante), e o resultado é claro: estamos diante de outra ação puramente arbitrária de Alexandre de Moraes, sem nenhuma base que a respalde, nem na Constituição, nem no Código Penal, nem no Código de Processo Penal.
Ninguém é obrigado a gostar de Jair Bolsonaro ou das ideias que ele professa. Mas mesmo quem não tem a menor simpatia pelo ex-presidente, e até mesmo quem está convicto de que ele de fato liderou uma tentativa de golpe de Estado, há de admitir que não é possível abrir mão de garantias democráticas básicas na persecução penal, independentemente de quem seja e do que tenha feito o investigado ou réu. Mas, alegando “proteger a democracia”, Alexandre de Moraes tem transgredido todos os limites que caracterizam a ordem democrática, com medidas inconstitucionais e abusivas. E tão grave quanto essa descida autoritária do ministro é o silêncio de quem deveria estar denunciando o abuso, mas se cala apenas porque o alvo se chama Jair Bolsonaro.
Gazeta do Povo