Marco Aurélio Mello: STF precisa deixar de ser um ator político

Em entrevista exclusiva à Gazeta do Povo, em parceira do programa Café com a Gazeta com a coluna Entrelinhas, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello, que passou mais de três décadas na mais alta Corte do país, falou sobre temas espinhosos do Judiciário brasileiro. Marco Aurélio, que também foi presidente do STF, abordou desde o polêmico “Inquérito do fim do mundo” até a atuação do Supremo nos casos do 8 de janeiro, passando por temas como liberdade de expressão, ativismo judicial e o papel do Senado diante de um Judiciário cada vez mais questionado.

Mesmo aposentado, o ex-ministro segue sendo uma das vozes mais respeitadas e críticas do direito constitucional brasileiro. Na conversa, ele reflete sobre a atuação do ministro Alexandre de Moraes, a subversão de garantias constitucionais e os riscos de uma “juristocracia” no país.

Entrelinhas: O senhor acredita que o Brasil vive uma “juristocracia”, onde o STF estaria acima da própria Constituição? 

Marco Aurélio: Quando a Suprema Corte se torna criadora das regras e não apenas sua guardiã, perverte-se o sistema. A Constituição deve nortear o Judiciário — não o contrário. A partir do momento em que se ignora isso, abre-se a porta para decisões arbitrárias e para um poder.

Entrelinhas: Como restabelecer o equilíbrio entre os Poderes?

Marco Aurélio: A solução está no respeito às instituições, na autocontenção dos Poderes e, sobretudo, na aplicação fiel da Constituição. Enquanto houver protagonismos individuais e interpretações criativas das normas, seguiremos inseguros juridicamente. É preciso que o Supremo volte a ser Corte Constitucional — e não um ator político.

Entrelinhas: Diante desse cenário, o Senado pode ser um contrapeso ao STF? A renovação nas próximas eleições pode provocar esse embate entre os Poderes? 

Marco Aurélio: As questões do Supremo devem ser resolvidas internamente, pelo colegiado. Mas é fato que o Senado tem o poder de conter excessos, inclusive pela via constitucional. Se houver uma renovação significativa, a tensão entre Legislativo e Judiciário pode aumentar. E, francamente, não gostaria de estar na pele do ministro Alexandre de Moraes se isso acontecer.

Entrelinhas: O senhor costumava chamar o Inquérito das Fake News de “Inquérito do fim do mundo”. O que pensa hoje sobre ele? 

Marco Aurélio: Continuo vendo da mesma forma. Ele foi instaurado sem provocação do Ministério Público ou da polícia — foi a própria vítima, o Supremo, que instaurou. Isso é inédito e preocupante. Hoje esse inquérito absorve tudo, já foi alvo de pedido de arquivamento pela Procuradoria-Geral da República, e mesmo assim continua. Não sabemos onde vai parar.

Entrelinhas: O ministro Alexandre de Moraes disse recentemente que é um mito falar em ativismo judicial no STF. O senhor concorda? 

Marco Aurélio: Eu conheço o ministro Alexandre há muitos anos e inclusive o recomendei para o cargo, por sua experiência. Mas preciso reconhecer: ele tem forçado a mão. E isso é ruim para a Corte e para a democracia. A Constituição se impõe a todos — inclusive ao Supremo. Se a Corte se coloca acima dela, estamos criando um critério de plantão, o que impede qualquer avanço institucional.

Entrelinhas: Qual sua opinião sobre a decisão recente que derrubou o artigo 19 do Marco Civil da Internet, obrigando plataformas a removerem conteúdos sem ordem judicial? 

Marco Aurélio: Isso contraria a medula da República, que é a liberdade de expressão. A Constituição veda qualquer embaraço à comunicação jornalística. Vivemos em um Estado democrático de direito, e decisões assim afetam diretamente essa estrutura. A censura não pode ser tolerada, nem direta, nem disfarçada.

Entrelinhas: O senhor também já disse que o STF não deveria julgar os envolvidos no 8 de janeiro. Como vê as penas aplicadas a esses réus? 

Marco Aurélio: São penas duríssimas, típicas de crimes hediondos. Estão somando penas de forma cumulativa, o que fere um princípio básico do direito penal: o crime mais grave absorve o menos grave. Uma moça que usou batom para escrever na estátua da Justiça foi condenada a 14 anos. Isso não se sustenta. Algo está errado, e é preciso rever essa dosimetria com urgência.

Entrelinhas: Ministro, em 2022 o senhor foi criticado por dizer que Lula não havia sido inocentado, mas sim beneficiado por uma decisão do STF. O senhor mantém essa posição? 

Marco Aurélio: O que tivemos foi uma condenação confirmada, inclusive com pena cumprida por cerca de 500 dias. Depois, o Supremo concluiu que a 13ª Vara de Curitiba era incompetente e anulou os atos. Isso não é absolvição. É voltar à estaca zero por um critério processual. E quando o Supremo decide, não há mais a quem recorrer.

Mariana Braga – (Foto: Nelson Jr./SCO/STF) – Gazeta do Povo

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