Magistrada diz que colegas juízas foram expostas ao criticarem consulta pública sobre paridade de gênero
O racha no Judiciário por conta da resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) — que tem como objetivo garantir a adoção de paridade de gênero para promoção na magistratura — traz um alerta para a baixa representatividade feminina nos tribunais. A avaliação é da desembargadora federal Salise Sanchotene, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), relatora da ação que provocou uma série de desdobramentos. Um deles gira em torno das manifestações em defesa das juízas que teriam sofrido represálias por discordarem da consulta pública da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) a respeito do ato normativo.
Em 26 de setembro, o conselho aprovou um ato normativo que impõe a intercalação de uma lista exclusiva de mulheres e outra tradicional mista conforme a abertura de vagas para servidores de carreira por merecimento. Ao Correio, Sanchotene destacou que a aprovação da resolução era uma preocupação da ministra aposentada Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Ela também saiu em defesa das magistradas que entraram em conflito com a Ajufe. A associação nega qualquer intenção de machismo, mas a desembargadora discorda. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
A senhora foi relatora da ação que visa garantir o equilíbrio de gênero nos tribunais. Como foi o processo até a conclusão do relatório?
A resolução principal já tem cinco anos, que é aquela que trata da instituição de uma política pelo Poder Judiciário, via CNJ, que ocorreu na gestão da ministra Cármen Lúcia. Desde então, já estávamos preocupadas com isso. Fizemos seminários, as mulheres que trabalham com a Escola da Magistratura criaram um novo estudo de gênero e começaram a fazer pesquisas, levantamentos, sobre números. No CNJ, também temos números sobre a participação feminina no Judiciário.
E as outras entidades?
A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) também fez outros levantamentos. Eles têm uma pesquisa muito abrangente sobre as dificuldades que as mulheres encontram na carreira, sobre o por que elas não se promovem na atualidade. Todos esses estudos nos deram um panorama que realmente as mulheres sofriam a chamada discriminação indireta. Muitas vezes, elas estão lá no quinto mais antigo da lista, de antiguidade, mas elas não são convocadas para cargos como juízas auxiliares das corregedorias e para as presidências dos tribunais.
O CNJ começou em 2004 e, desde então, tivemos, ao todo, apenas 20% de participação feminina. E isso não retrata o que nós somos na sociedade. Atualmente, somos 52% da população. É uma questão de déficit na democracia.
Qual é o impacto de termos poucas mulheres no Judiciário?
Há estudos mostrando, também, que se uma mulher está presente no tribunal, ela tem condições de influenciar decisões importantes para outras mulheres, em situações, por exemplo, de violência doméstica, de violência sexual contra mulher.
Esses estudos demonstraram claramente a falta de representatividade feminina…
Sim. Chegamos a uma conclusão que um mero percurso do tempo não seria possível para que pudéssemos atingir essa almejada paridade, porque temos um acompanhamento de 40 anos de evolução e os números nunca passam de 25% nos tribunais. Por mais que se fale, que se faça política pública, por mais que a gente diga que precisamos de mais mulheres, até hoje, não conseguimos passar desses números.
A resolução teve um apoio muito grande da ministra Rosa
Weber, certo?
O momento era adequado, os números que tínhamos revelavam o déficit de representação e o CNJ tinha competência para fazer isso via resolução e ação afirmativa. Foi assim que trabalhamos esse voto, a pedido da ministra Rosa Weber. O que é muito importante deixar claro também é que foi um movimento de mulheres, sim, mas com o apoio institucional da ministra presidente. Ela entendeu que era a hora.
E agora, com a aprovação, quais serão os próximos passos?
Essa política vai entrar em vigor a partir de janeiro de 2024. Vamos orientar os tribunais a respeito das dúvidas que eles tiverem. Tudo isso vai ser detalhado no ofício que irei mandar aos tribunais, explicando como deve acontecer, pois sabemos que há uma resistência, sim, de alguns tribunais, em seguir a orientação que foi dada via resolução.
A ministra Rosa Weber, no julgamento, disse que a senhora buscou consenso. Como foi a conversa com a categoria sobre o assunto?
Uma ação afirmativa já é um assunto polêmico. Estamos construindo em cima de uma realidade existente e que se não fosse a ação afirmativa não seria alterada tão cedo. Há uma estatística da ONU Mulheres dizendo que nós levaríamos três séculos para atingir a almejada paridade de gênero, se aguardarmos o mero percurso do tempo. Tínhamos dois critérios: o da antiguidade e o do merecimento. O da antiguidade, na minha visão, é o mesmo critério já enfrentado no STF numa aprovação de um concurso público, e no que o Supremo disse que, embora a lista de antiguidade que o concurso revela, no meio daquelas pessoas ali, deveriam entrar cotas de raça e também das pessoas com deficiências. Na minha visão, o raciocínio era o mesmo. E houve uma resistência muito grande em relação a mexer na lista de antiguidade.
Essas listas são predominantemente masculinas, certo?
Sim. As mulheres começaram a entrar na magistratura mais tarde. O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, só aceitou a primeira magistrada na década de 1980. Outros tribunais na década de 1970 e alguns na década de 1960, mas isso não é nada em termos históricos. Então, pela primeira vez, um órgão de cúpula da administração pública reconheceu que as mulheres são sub-representadas nos tribunais.
Recentemente, um grupo de juízas discordou do posicionamento da Ajufe em fazer uma consulta pública sobre o tema e também citou que houve machismo por parte da entidade. Como a senhora tem acompanhado essa polêmica?
O que aconteceu foi lamentável. Eu tenho, na minha visão, que se fossem homens ali naquela situação isso não teria acontecido. Sabemos que no passado houve divergência de colegas da diretoria entre si e ninguém foi expulso, ninguém foi incitado a renunciar. Vemos ali, sim, uma questão de gênero. Embora algumas mulheres façam parte da diretoria da Ajufe, o que aconteceu com algumas colegas mulheres foi uma execração pública.
Elas foram expostas?
O nome delas apareceu em uma nota da entidade, foram nominadas uma a uma. Todas as juízas envolvidas no movimento, uma delas era a nossa líder de mulheres. Líder do primeiro coletivo surgido em associação e depois disso acabou também surgindo na AMB Mulheres, Anamatra Mulheres e Ajufe Mulheres. Elas fazem, há muitos anos, pesquisas, escrevem sobre isso, realizam eventos. Sentimos que foi, sim, uma espécie de retaliação por tudo que aconteceu. Com muito pesar e muita tristeza que eu vejo isso acontecer. Acho que devemos permanecer na associação porque ano que vem tem eleição e esse fato tem que ser lembrado por todos e por todas. Temos que ficar e lutar para que uma próxima diretoria tenha mais consciência com relação a esse tipo de situação e não exponha colegas da forma como aconteceu.
Uma das críticas à resolução é que atinge apenas os tribunais de segunda instância. Como a senhora rebate esse argumento?
Nas listas de segunda instância, temos o critério de merecimento claríssimo. Quando vamos para os tribunais superiores, não é isso que predomina. Nesse caso, as pessoas voluntariamente se inscrevem para concorrer, os ministros fazem uma avaliação. Se nós conseguirmos ampliar a presença feminina nos tribunais de segunda instância, teremos mais mulheres mostrando o seu trabalho, com mais visibilidade, inclusive para poder concorrer a vagas nos tribunais superiores.
CB