Aéreas no vermelho: R$ 55 bilhões de prejuízo em dez anos e uma crise sem fim

Aviões lotados, mais passageiros voando — e um prejuízo acumulado de R$ 54,7 bilhões entre 2015 e o primeiro semestre de 2025, segundo a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). As companhias aéreas brasileiras enfrentaram uma crise que desafia a lógica: quanto mais gente voa, mais dinheiro as empresas perdem.

A demanda por transporte aéreo, medida em passageiros-quilômetro transportados, aumentou 6,7% entre 2015 e 2024. Somente no primeiro semestre deste ano, a alta foi de 11,1% comparativamente aos seis primeiros meses de 2024. A taxa de ocupação dos aviões foi de 85% em outubro, a maior para esse mês desde o início da série, em 2000.

A crise é estrutural e permanente, resultado de problemas macroeconômicos, falhas regulatórias e vulnerabilidades internas que transformam qualquer choque em ameaça à sobrevivência.

Varig, Vasp, Transbrasil e Avianca Brasil: um cemitério de companhias aéreas

A lista de empresas que pararam de voar desde o início do século é grande. Passa por nomes que eram sinônimo de Brasil no exterior, como a Varig; outras históricas, como a Vasp e a Transbrasil; e outras que tiveram uma vida mais efêmera, como a Avianca Brasil (ex-OceanAir) ou a Itapemirim, que durou meses.

Outras tiveram de realizar complexos processos de reestruturação corporativa. A TAM se fundiu com a chilena LAN, em 2012, para criar a Latam Airlines; a Gol se associou à colombiana Avianca em 2022 para criar a Abra. Mesmo assim, ambas passaram por processos de recuperação judicial nos Estados Unidos.

O processo da Latam Airlines durou de maio de 2020 a novembro de 2022. O da Gol, de janeiro de 2024 a junho de 2025. A Azul entrou com pedido de Chapter 11 (recuperação judicial americana) nos Estados Unidos em maio de 2025, com plano aprovado em dezembro para reestruturar dívida que ultrapassava R$ 34,6 bilhões.

Segundo Marcus Quinella, diretor da FGV Transportes, o cenário de crise no setor aéreo brasileiro é explicado pela combinação de fatores macroeconômicos, internos e regulatórios, tornando-se uma situação permanente.

Custos dolarizados e juros elevados corroem margens

Um dos pilares da crise permanente é a questão cambial. O setor opera com uma intensa dolarização de custos, enquanto suas receitas são majoritariamente geradas em reais. A Associação Brasileira de Empresas Aéreas (Abear) estima que 57% das despesas são em moeda norte-americana, entre elas algumas das principais do setor, como combustíveis, lubrificantes, seguros, arrendamentos e manutenção de aeronaves.

QAV: combustível nacional com preço de importado

Outro grande problema macroeconômico está relacionado ao querosene de aviação (QAV), que responde por cerca de um terço dos custos das empresas. O custo é um dos maiores pesos na balança financeira, podendo responder por cerca de 30% a 38% dos custos totais de uma companhia aérea. Embora 90% do QAV seja produzido no Brasil, sua política de preços segue a paridade internacional, como se fosse um combustível importado.

Aspectos regulatórios e fiscais internos também contribuem para o custo do combustível, que em outubro custava R$ 3,48 por litro, quase a metade do registrado em julho de 2022, quando foi registrado o pico dos preços da série histórica da agência reguladora, iniciada em 2000.

O ministro de Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho, atribui essa queda a negociações do governo com a Petrobras, mas no comparativo entre os dois períodos a cotação do dólar permaneceu praticamente estável e o preço do petróleo em dólares caiu pela metade.

O querosene é tributado pelo ICMS, com alíquotas que variam entre os estados, criando distorções competitivas entre aeroportos e rotas. Somente em relação aos combustíveis, a regulação é extremamente fragmentada, dependendo de órgãos como Agência Nacional do Petróleo (ANP), Ministério dos Portos e Aeroportos e secretarias estaduais da Fazenda. A combinação de combustível caro e câmbio volátil drena a liquidez e impede a formação de margens consistentes.

Um problema que também está no radar das empresas aéreas é a questão dos juros. O Brasil mantém uma das taxas reais de juros mais altas do mundo, o que eleva os custos de arrendamento de aeronaves, financiamentos e capital de giro. Segundo Quinella, as taxas têm efeitos pesados sobre o arrendamento (leasing) das aeronaves, financiamentos, dívidas e o capital de giro das empresas.

Aviões lotados, mas lucro zero

Esse cenário macroeconômico adverso se agrava pela volatilidade da demanda. A demanda aérea brasileira também é altamente sensível à renda, segundo Quinella. “Isso significa que flutuações no Produto Interno Bruto (PIB) do país resultam diretamente em um maior ou menor número de passageiros. O comportamento do consumidor demonstra uma alta sensibilidade ao preço em função da renda, o que afeta as tarifas médias praticadas pelas companhias.”

Essa volatilidade torna o modelo de negócio ainda mais desafiador. As companhias aéreas dependem de manter as aeronaves com alta taxa de ocupação para sobreviverem. Segundo a Anac, em outubro essa taxa era de 85%, 1,1 ponto percentual maior do que no mesmo mês do ano anterior — desde o início da série histórica do órgão regulador, os aviões nunca voaram tão cheios nesse mês.

Três empresas controlam 99,9% do mercado

O mercado aéreo doméstico brasileiro é marcado por um oligopólio de alta concentração. Segundo a Anac, em outubro de 2000, as três maiores empresas em participação de mercado – Varig, TAM e Vasp – tinham 64,2% do total. Naquele mês 2,4 milhões de passageiros embarcaram em voos domésticos e foram oferecidos 5,4 milhões de assentos.

Vinte e cinco anos depois, a concentração se aprofundou drasticamente: Latam, Gol e Azul detêm praticamente a totalidade do mercado doméstico, ultrapassando 99,9%. Em outubro de 2025, viajaram 9 milhões de passageiros e foram oferecidos 10,9 milhões de assentos.

Por que novos competidores não conseguem entrar

Essa concentração não é apenas fruto das forças de mercado, mas de fatores estruturais e históricos que elevaram o risco da operação. Os custos de entrada para novos competidores são proibitivos. A frota é cara, a manutenção é dispendiosa, os seguros são elevados e o acesso aos slots (tempos de pouso e decolagem) em aeroportos rentáveis como Congonhas, Santos Dumont e Brasília é restrito aos grandes players.

“A aviação depende de economia de escala, como na compra de aeronaves, arrendamento, manutenção, treinamento e softwares. Isso permite que os grandes players consigam operar mais barato que os pequenos, dificultando a abertura do mercado”, destaca Quinella.

Ele afirma que o custo para novos concorrentes é extremamente alto, envolvendo frota cara, manutenção cara, tripulações, seguros e, principalmente, o acesso aos slots em aeroportos rentáveis.

O mercado brasileiro é grande em volume, mas pouco rentável. A população tem baixo poder aquisitivo, o que limita as tarifas que as empresas podem cobrar. Esse cenário — alto custo de entrada e baixa margem de lucro — inviabiliza a chegada de novos competidores e preserva o oligopólio.

Pequenas companhias raramente sobrevivem de forma independente. O padrão histórico é de aquisições pelos grandes players: Gol comprou a Webjet em 2012; TAM incorporou a Pantanal em 2009; Azul absorveu a Trip em 2012.

Mesmo assim, alguns grupos têm sondado o mercado brasileiro. Em 2019, o grupo espanhol Globalia, então dono da Air Europa, manifestou interesse em operar voos domésticos no Brasil. Mais recentemente, o grupo chileno Sky Airline também manifestou interesse em voar no país.

Especialistas destacam que em um oligopólio, as empresas podem tentar ditar ou influenciar os preços, o que é um fator de risco regulatório, embora a liberdade tarifária seja permitida por lei no Brasil.

O mercado concentrado e de baixa margem de lucro está vulnerável a colapsos, como ocorreu no passado com a Varig e, mais recentemente, com as recuperações judiciais de companhias importantes, diz Quinella.

A concentração em poucas empresas eleva o risco sistêmico da aviação brasileira, pois a falência ou o enfraquecimento de uma ou duas dessas companhias representa uma ameaça significativa à conectividade e ao sistema de transporte aéreo do país.

A pandemia expôs as fragilidades do setor

A pandemia de COVID-19 expôs brutalmente as fragilidades estruturais do setor, catalisando a crise mais aguda da história recente. O choque foi global, mas no Brasil ele acelerou problemas como o endividamento e a baixa liquidez.

A queda na demanda foi abrupta e sem precedentes. O fechamento de fronteiras, as restrições sanitárias e o medo do contágio resultaram em cancelamentos massivos de voos. Em abril de 2020, o movimento de passageiros no Brasil chegou a cair 94,5%, resultando em perdas superiores a R$ 15 bilhões para as principais companhias.

O impacto financeiro foi imediato e dramático no mercado de ações. Segundo o portal financeiro Investing.com, nos últimos cinco anos as ações da Gol tiveram queda de 77,2%, na B3. As da Azul, 97,8%. As da Latam Airlines se desvalorizaram 64,7% na Bolsa de Nova York (NYSE).

A queda no preço das ações resultou em uma redução do valor patrimonial das empresas, tornando-as mais suscetíveis a aquisições ou fusões por parte de concorrentes ou compradores estrangeiros, um risco que se tornou iminente no mercado sul-americano após a crise.

Brasil não tem política de Estado para aviação

A crise é perpetuada pela ausência de uma política de Estado coordenada e estrutural para a aviação. Historicamente, o Brasil não trata a aviação como uma política de Estado, o que resulta em falta de apoio governamental e de estratégia nacional.

Falta uma política pública estruturante, como planejamento de longo prazo para o setor. O governo frequentemente adota medidas pontuais e reativas, como reduções temporárias do ICMS sobre o QAV, em vez de uma estratégia nacional coordenada.

Políticas públicas inconsistentes, como o congelamento de tarifas sem controle de custos, e intervenções regulatórias pontuais — como a definição de redes aéreas essenciais durante a pandemia — tiveram um impacto limitado ou até negativo na saúde financeira das empresas.

Regras mudam o tempo todo e encarecem operação

A instabilidade regulatória é constante e abrange diversas áreas, incluindo as regras sobre bagagem de mão, o regime de ICMS do QAV em diferentes estados e as regras de slots em aeroportos coordenados. Em alguns casos, políticas tentam intervir na liberdade tarifária que é garantida por lei.

O problema mais recente envolveu as bagagens despachadas. A aprovação da bagagem grátis pela Câmara no fim de outubro pode encarecer as viagens aéreas para todos os passageiros, caso seja aprovada pelo Senado e sancionada pelo presidente. Especialistas alertam que as companhias aéreas tendem a repassar o custo da franquia obrigatória para o preço das passagens, penalizando inclusive quem não despacha mala.

“Uma coisa sempre vai compensar outra. Se uma mala tem que ser de graça, aumenta-se o preço da segunda mala”, afirma Gustavo Kloh, professor de Direito da Escola de Direito do Rio de Janeiro (FGV Direito Rio) e sócio do escritório Navarro, Botelho, Nahon e Kloh Advogados.

A Abear classifica a decisão da Câmara como “retrocesso” que compromete a competitividade do setor. Segundo a entidade, a obrigatoriedade da franquia de bagagem despachada elevará os custos operacionais das companhias, que serão repassados aos consumidores na forma de passagens mais caras.

A Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata) e a Associação Latino-Americana e do Caribe de Transporte Aéreo (Alta) manifestaram preocupação com o projeto. Em nota conjunta, as entidades afirmam que a medida representa um retrocesso em relação às práticas globais de aviação e pode prejudicar a competitividade do Brasil no mercado internacional.

Iata e Alta alertam que a introdução de obrigações sem diretrizes claras aumenta a incerteza regulatória. Mudanças frequentes e custosas desestimulam investimentos e afastam operadores internacionais.

Brasil lidera ranking mundial de processos contra aéreas

Outro problema estrutural interno, pouco visto em outros países, é a alta judicialização do setor. O Brasil é o líder mundial nesse quesito.

Somente no primeiro semestre de 2025, as condenações judiciais decorrentes da prestação de serviços aéreos pesaram em R$ 710 milhões nos cofres das companhias, quase o triplo do verificado nos mesmos meses de 2024, segundo dados da Anac.

Passageiros movem constantemente ações judiciais contra as empresas, gerando um custo operacional gravíssimo que consome as já baixas margens de lucro. “Qualquer passageiro entra com ações judiciais contra as companhias aéreas, o que representa um custo altíssimo para as empresas”, diz Quinella.

Essa judicialização é facilitada pela regulação fragmentada e dispersa entre diferentes órgãos (Anac, ANP, estados, judiciário), que cria um vazio de políticas estruturantes.

A falta de um apoio governamental rápido e estrutural se tornou evidente durante os grandes choques. Ao contrário de outros países, o apoio financeiro oferecido no Brasil demonstrou ter uma implementação lenta. Linhas de financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para o setor aéreo, discutidas ao longo de 2024, ainda não foram implementadas. Segundo o Ministério de Portos e Aeroportos (MPor), as liberações estão previstas para 2026.

O MPor anunciou que o Fundo Nacional de Aviação Civil (Fnac) será usado de forma permanente como fonte de financiamento para as companhias aéreas. A política aprovada em 2024 ainda estava envolta em dúvidas sobre sua duração, mas o ministro Silvio Costa Filho confirmou que as liberações serão anuais. Os empréstimos serão operacionalizados pelo BNDES.

Gazeta do Povo

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