O Brasil assistiu, nesta terça-feira (21), a uma das cenas mais surpreendentes e simbólicas da história recente do Supremo Tribunal Federal (STF). E, desta vez, não foi por causa de mais um abuso, excesso ou de um novo ato de autoritarismo. Foi por algo raro, quase impensável: um ministro do STF admitindo que a Corte cometeu injustiças – inclusive ele próprio. O ministro Luiz Fux fez o que poucos têm coragem de fazer em Brasília: olhou para dentro, reconheceu erros, apontou falhas e devolveu um pouco de dignidade ao tribunal.
Durante o julgamento do núcleo 4 da trama do golpe, o chamado “núcleo da desinformação”, Fux fez da leitura de seu voto um discurso histórico. Em suas palavras, admitiu que o entendimento anterior dele – o mesmo que o levou a condenar centenas de réus do 8 de janeiro – foi injusto, e que sua consciência não permitia mais sustentar aquela posição. Foi uma confissão rara, um ato de humildade que há muito não se via entre ministros acostumados a nunca errar, a jamais recuar e a se comportar como infalíveis.
“Fux fez o que há muito tempo o país esperava de alguém do Supremo: devolveu o tribunal aos pés da Constituição. Lembrou que ministros são juízes, não militantes. Que a toga é símbolo de responsabilidade, não de poder. Que a Justiça se engrandece quando reconhece seus erros”
Mas a fala de Fux foi mais do que uma autocrítica. Foi uma verdadeira pedrada, ou melhor, uma sucessão de pedradas, contra Alexandre de Moraes e contra o modo de agir de parte do Supremo. Porque, ao admitir que houve injustiça, Fux implicitamente reconheceu que os julgamentos conduzidos com atropelo de garantias, sem provas concretas e com penas desproporcionais foram, sim, abusivos. E que as decisões tomadas sob a bandeira de “defesa da democracia” muitas vezes acabaram violando os próprios princípios democráticos.
A nobreza do gesto está em reconhecer que a toga não torna ninguém infalível. Que a lei existe para proteger o cidadão do poder, e não o poder da crítica. Fux mostrou, com coragem, que é possível estar no Supremo e ainda conservar algo essencial à justiça: a humildade de reconhecer um erro. É algo absolutamente inédito na composição atual do tribunal, que prefere mandar investigar os críticos do que admitir que fez algo de errado – basta ver o pedido feito pela Polícia Federal, nos últimos dias, para investigar Filipe Martins, advogados e jornalistas pela fraude cometida contra o próprio Filipe.
E não parou por aí. O ministro Fux ainda aproveitou para responder às críticas de professores e juristas estrangeiros que o atacaram por suas posições e, pasmem, comemoraram a condenação de Bolsonaro. Alguns desses juristas sequer leram o processo ou o voto do próprio Fux, que reagiu com uma fala que deveria ecoar em cada universidade do país: “Considero lamentável que a seriedade acadêmica tenha sido deixada de lado por um rasgo de militância política”. Foi um tapa de luva de pelica.
A frase de Fux, aliás, vale ouro. Porque sintetiza o que há de mais podre na relação entre parte da academia e a política brasileira: o uso de cátedras, títulos e instituições para disfarçar ideologia de esquerda com verniz intelectual. O ministro apontou, sem citar nomes, o óbvio que muitos fingem não ver – a militância travestida de neutralidade científica. A mesma militância que domina departamentos silencia vozes dissonantes e contamina o debate público.
Mas o melhor ainda estava por vir. Fux encerrou sua fala com uma crítica direta àqueles que insistem em transformar o Supremo em um megafone para a criação de narrativas políticas na imprensa. “Aliás”, disse ele, “a manifestação de ministros que não participaram do julgamento, fora dos autos, recebeu uma crítica contundente sobre a violação à Lei Orgânica da Magistratura”.
Vamos traduzir do juridiquês: foi uma porrada em Gilmar Mendes – o ministro que vive comentando processos alheios, criticando colegas, antecipando votos e dando entrevistas como se fosse comentarista político, e que se achou no direito de fustigar Fux na semana passada por não votar como Gilmar queria. Foi um tapa de luva – desta vez, de luva de boxe. Um direto, sem rodeios. Gilmar viola a lei, simples assim.
Em poucas palavras, Fux fez o que há muito tempo o país esperava de alguém do Supremo: devolveu o tribunal aos pés da Constituição. Lembrou que ministros são juízes, não militantes. Que a toga é símbolo de responsabilidade, não de poder. Que a Justiça se engrandece quando reconhece seus erros e se apequena quando os justifica ou dobra a aposta, em sua sanha de parecer sempre infalível ou demonstrar força. Suprema mesma é a virtude. É a humildade.
Em tempos em que a Corte se acostumou a falar em nome da “democracia” enquanto atropela princípios elementares do Estado de Direito, o gesto de Fux foi uma lufada de ar fresco e puro. Foi como abrir a janela de um tribunal ofuscado pelas sombras do autoritarismo e deixar entrar um pouco de luz. Sim, o Supremo cometeu injustiças. Sim, o Supremo violou direitos. Sim, essas injustiças precisam ser reparadas. Dizer isso, vindo de dentro do próprio STF, é tão belo que chega a ser inacreditável.
Luiz Fux mostrou que é possível vestir a toga sem perder a consciência. Mostrou que ainda há esperança de ver o Supremo voltar a ser o que deveria ter sido sempre: a casa da Constituição, e não da conveniência política. Fux provou o que disse no julgamento de Débora Rodrigues, a Débora do Batom: “Debaixo da toga bate o coração de um homem”. Não de um deus. Homens erram. Homens corrigem. Bravo, ministro Fux.

Por Deltan Dallagnol, mestre em Direito pela Harvard Law School e foi o deputado federal mais votado do Paraná em 2022. Trabalhou como procurador por 18 anos, atuando em várias operações no combate a crimes como corrupção e lavagem de dinheiro. Foi coordenador da operação Lava Jato em Curitiba. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.